A transmissão do coronavírus por pessoas assintomáticas tem sido apresentada como uma certeza científica e um assunto encerrado.

Contudo, até recentemente, não havia base científica alguma, apenas crenças.

A "certeza" tinha sido estabelecida por uma "carta ao editor" do The New England Journal of Medicine (NEJM), postada em 30 de janeiro no site da publicação.

Intitulada Transmission of 2019-nCoV Infection from an Asymptomatic Contact in Germany, e citada atualmente em 369 artigos científicos, a correspondência descreve como uma  pessoa infectada sem sintomas contagiou quatro colegas de trabalho. Trata-se de uma comunicação técnica, sem elementos de um artigo científico, como referências e bibliografia, e sem revisão por pares, que amparou inúmeras decisões políticas de enfrentamento à pandemia.

Quando o Dr. Anthony Fauci, diretor do NIAID (National Institute of Allergy and Infectious Diseases) desde 1984, e consultor de seis presidentes americanos, foi questionado por jornalistas sobre a transmissão por assintomáticos, sua resposta foi definitiva:

"There's no doubt after reading this paper that asymptomatic transmission is occurring. This study lays the question to rest".

[Em tradução livre, "Depois de ler o artigo [NEJM], não há dúvida de que a transmissão assintomática está ocorrendo. Este estudo encerra a questão”].

Já as autoridades alemãs resolveram investigar a narrativa antes de "encerrar a questão".

O Instituto Robert Koch (RKI), a agência de saúde pública do governo alemão, e a Autoridade de Saúde e Segurança Alimentar do estado da Baviera conversaram com a paciente de Xangai por telefone, e descobriram que ela tinha sintomas enquanto estava na Alemanha. A estória do doente assintomático contaminando pessoas não tinha substância.

O RKI comunicou ao The New England Journal of Medicine que a carta continha informações "falhas". Os autores não tinham contactado a paciente e apresentaram rumores como fatos. O texto da carta foi atualizado.

A "certeza científica" não passou de uma fabricação, mas continou a ser apontada como justificativa para as decisões políticas. Fauci passou a dizer "acreditar" na hipótese da transmissão do novo coronavírus por infectados assintomáticos.

Naturalmente, "falhas" acadêmicas não invalidam hipóteses assim como acreditar nelas não as validam.

Uma das instituições científicas mais antigas e respeitáveis da Grã-Bretanha, a Royal Society, foi fundada com o lema 'Nullius in verba' ("Nas palavras de ninguém", em latim). Essa é uma expressão da determinação dos Membros da Sociedade em resistir à dominação de autoridade e em verificar qualquer afirmação através de fatos determinados por experimentação. O conhecimento sobre o mundo material deve se basear em evidências e não em autoridade.

Felizmente, estão sendo conduzidos novos estudos observacionais, revisados por pares e publicados em revistas respeitáveis, buscando conhecimento científico sobre a questão da transmissão do vírus. Entre os achados:

  • uma pessoa infectada sem sintomas pode contagiar alguém que virá a apresentar sintomas típicos, atípicos, leves ou graves, ou assintomático;
  • a carga viral de pacientes sintomáticos e assintomáticos é semelhante;
  • o nível de carga viral tem mostrado que pode variar significativamente em diferentes estágios da doença. Um dos estudos sugere que a maior carga viral ocorre no momento do início dos sintomas, inferindo que a infecciosidade atinge o pico antes do início dos sintomas.
  • cargas virais quantitativas de SARS-CoV-2 podem ser igualmente altas em pessoas com sintomas típicos, com sintomas atípicos, pré-sintomáticos e assintomáticos;
  • o coronavírus é eliminado em altas concentrações da cavidade nasal mesmo antes do desenvolvimento dos sintomas;
  • como observado em vários países, "fique em casa" responde por grande parte das novas infecções, seguido de casas de repouso e uso de transporte público.

Entre as muitas considerações sobre o assunto, destacam-se:

COVID-19 Transmission Within a Family Cluster by Presymptomatic Carriers in China

  • "A carga viral de pacientes sintomáticos e assintomáticos é semelhante e pacientes assintomáticos podem infectar outros. Esses 'pacientes silenciosos' podem permanecer sem diagnóstico e ser capazes de espalhar a doença para um grande número de pessoas. Por último, parece que as crianças podem não ser tão suscetíveis a esse novo vírus quanto os adultos e idosos, e podem se sair melhor quando tiverem contraído o vírus. Conforme relatado, no agrupamento familiar, a criança de 6 anos não foi infectada e a de 13 meses foi infectada, mas permaneceu assintomática. Em resumo, existem variações entre os indivíduos nas manifestações clínicas da Covid-19, indicando que devemos prestar atenção em como evitar que pessoas sejam infectadas por pacientes assintomáticos e pacientes que estão no período de incubação". Clinical Infectious Diseases, ciaa316, doi.org/10.1093/cid/ciaa316

Temporal Dynamics in Viral Shedding and Transmissibility of COVID-19

  • "Observamos que a maior carga viral em swabs na orofaringe ocorre no momento do início dos sintomas e inferimos que a infecciosidade atingiu o pico antes do início dos sintomas. Estimamos que 44% dos casos secundários foram infectados durante o estágio pré-sintomático dos casos primários, em ambientes com agrupamentos familiares ... As medidas de controle devem ser ajustadas para levar em conta a provável transmissão pré-sintomática". Nature 2020 May;26(5):672-675. doi.org/10.1038/s41591-020-0869-5. Epub 2020 Apr 15.

SARS-CoV-2 Transmission from Presymptomatic Meeting Attendee, Germany - Research Letter

  • "Durante uma reunião em Munique, na Alemanha, um participante pré-sintomático com coronavírus infectou pelo menos 11 dos 13 outros participantes. Embora 5 participantes não apresentassem sintomas leves ou moderados, 6 apresentavam doença típica de coronavírus, sem dispnéia. A reunião foi realizada em uma sala de 70 m2. Durante a reunião, lanches foram servidos em estilo buffet na sala 4 vezes. Após 9,5 horas de discussões, os participantes jantaram em um restaurante próximo. Nossas descobertas sugerem o aperto de mãos e o contato face a face como possíveis modos de transmissão", Emerging Infectious Diseases Volume 26, Number 8—August 2020. doi.org/10.3201/eid2608.201235, Epub 2020 May 11.

Rapid asymptomatic transmission of COVID-19 during the incubation period demonstrating strong infectivity

  • "Fornecemos evidências válidas de eficiente transmissão assintomática de humano para humano do SARS-CoV-2, mostrando forte infectividade com base em um grupo de jovens de 16 a 23 anos em uma comunidade local fora de Wuhan. A Covid-19 foi rapidamente transmitida pelo paciente indicador durante o período (tardio) de incubação a outros sete jovens. Os sintomas dos jovens com Covid-19 tiveram início rápido e foram geralmente leves, inespecíficos, atípicos e diversos. Journal of Infection Volume 80, Issue 6, June 2020, Pages e1-e13. doi.org/10.1016/j.jinf.2020.03.006

Asymptomatic Transmission, the Achilles’ Heel of Current Strategies to Control Covid-19

  • "As cargas virais quantitativas de SARS-CoV-2 foram igualmente altas nos quatro grupos de sintomas (residentes com sintomas típicos, aqueles com sintomas atípicos, aqueles que eram pré-sintomáticos e aqueles que permaneceram assintomáticos). É notável que 17 das 24 amostras (70%) de pessoas pré-sintomáticas apresentavam vírus viáveis por cultura 1 a 6 dias antes do desenvolvimento dos sintomas. Mais da metade dos residentes que tiveram testes positivos eram assintomáticos no teste". The New England Journal of Medicine (NEJM). Editorial doi.org/10.1056/NEJMe2009758, Epub 2020 April 24

Presymptomatic SARS-CoV-2 infections and transmission in a skilled nursing facility

  • "O coronavírus é eliminado em altas concentrações da cavidade nasal mesmo antes do desenvolvimento dos sintomas. Estratégias de controle de infecção focadas apenas em residentes sintomáticos não foram suficientes para impedir a transmissão após a introdução do SARS-CoV-2 nesta instalação". The New England Journal of Medicine (NEJM).  doi/org/10.1056/NEJMoa2008457.

* Com informações do The New England Journal of Medicine (NEJM), Nature Medicine,  Journal of Infection, Emerging Infectuous Diseases, Instituto Robert Koch (RKI), Science

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